6.28.2009

Do "Público": Eles saem à rua pelo casamento. Mas alguns ainda se escondem

Infelizmente este artigo mete o dedo (e a mão, o pulso, a bota, a metralhadora, o acido sulfúrico...) na ferida de um modo que até nem a maior parte dos activistas LGBT vê...

Começa por escrever acerca da reivindicação do casamento, aliás, toda a a introdução do artigo é casamento até mais não. Mas as pessoas que não querem ser entrevistadas (sem dúvida malvados sem coração nem boas maneiras que se recusam a ser fotografados) que outra razão podem ter que não o medo da discriminação? E mesmo as pessoas que entrevistam, bem, elas próprias falam de discriminação.

Amigos, vamos assistir talvez à conquista do casamento, em poucas semanas (sem adopção, ou enquadramento decente da fertilidade, não é?). Lá estarei, de champanhe na mão, e contente por ter sido das primeiras pessoas a ter honra de ter assinado com o MPI (Movimento pela Igualdade). Mas vamos também que nos preparar para artigos da imprensa a dizerem cosias do género "meses depois do alargamento do casamento LGBT poucos são os que casam - para que então tanto barulho, etc?". Porque muitos vão chegar à conclusão que se lutou por uma coisa, mas que faltam ainda as condições, de segurança física e emocional, para que aqueles que o queiram possam realmente casar (protecção em caso de discriminação). E que os que não querem casar por acaso também precisam.

Espero que a grande luta do próximo ano seja por um enquadramento especifico das discriminações, que legislativa, quer penal. E por acções preventivas específicas, nas escolas, nos tribunais, nas prisões, nas forças da ordem, e na sociedade em geral. Espero também que os que decidam não casar, poly ou não, LGBT ou não, que lutem pelo direito de gerir pessoalmente quem os pode visitar em caso de acidente num hospital, numa prisão, quem pode decidir "desligar a máquina", quem pode herdar os seus bens. Porque no fundo o casamento é um contracto que define essas coisas em lugar do Estado.

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Eles saem à rua pelo casamento. Mas alguns ainda se escondem
27.06.2009, Andreia Sanches (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotos)

A luta pelo acesso ao casamento gay ganhou visibilidade. Mas há outros
temas no centro das reivindicações de quem festeja o "Orgulho LGBT"

A celebração do chamado "Orgulho LGBT" (sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero) tem dois pontos altos: a marcha, em Lisboa, e o arraial ao ar livre, também na capital. A marcha aconteceu no sábado - terá sido a maior de sempre, segundo a organização, e nela gritou-se pelo acesso ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Arraial Pride é
hoje, uma semana depois, em Belém, e tem como tema "as famílias que somos". São dois momentos de exposição pública das pessoas LGBT, mas também de reivindicação de direitos. O que significa que, aqui, não há quem se esconda. Ou quem recuse dar entrevistas. Certo? Errado.

Ao PÚBLICO, na última marcha, interessava encontrar exclusivamente casais gay. Casais anónimos. O desafio era simples: "Deixe-se fotografar para o jornal" e "diga-nos o que o faz sair à rua". Parecia simples: era uma marcha nas ruas de Lisboa, com música, animação, casais abraçados, alguns beijos (não muitos), pessoas com filhos (muitas)... mas ao longo da tarde os "nãos" sucederam-se. Onde estava o orgulho LGBT? Não houve ninguém a dizer: "Não dou entrevistas porque não me apetece aparecer a falar consigo". Houve outros argumentos: havia filhos que era preciso "proteger"; postos de trabalho a preservar - "Sou militar, não vão gostar se aparecer, desculpe"; familiares que se vissem a fotografia no jornal, assim, isolada, podiam ficar incomodados. "Desculpe, mas não." Afinal, por que é que eles saem à rua? "Orgulho LGBT"? Respostas de casais que aceitaram falar ao PÚBLICO.


Mafalda e Ana
Para que Portugal seja mais parecido com Espanha

Fazem parte da pequena multidão de jovens muito jovens que este ano participaram na marcha LGBT. Mafalda Sampaio e Ana Gavilan têm 20 anos e são estudantes do ensino superior (Mafalda escolheu Psicologia, Ana frequenta Design de Moda). "Sempre soube que era bissexual", diz a estudante de Psicologia que também trabalha num café na Baixa lisboeta. Ou seja, desde que se lembra de gostar, tanto gostava de rapazes como de raparigas. Com Ana aconteceu de maneira diferente. Descobriu pouco antes dos 18 anos que era homossexual e há quem na família ainda esteja a digerir essa descoberta. Há um ano e pouco começaram a viver juntas. E agora já fazem planos: gostavam de casar-se, sonham ter filhos.

A lei portuguesa não permite casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Nem a adopção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo. Nem tão-pouco o recurso a técnicas de reprodução medicamente assistida por parte de mulheres lésbicas. Mafalda sabe de tudo isto e, nesta tarde tórrida, em plena marcha do "Orgulho", trava o passo para dizer sem esconder a irritação: "Gostava de ter mais direitos". Depois continua: "Acho que para lutar por eles é preciso dar a cara, acho que os eventos em público são essenciais. Acho que há mais gente a participar nestes eventos públicos e, provavelmente, isso tem a ver com o facto de o casamento gay estar mais em cima da mesa. E de haver figuras públicas a defendê-lo. Mas, francamente, acho que, na verdade, esta questão já devia ser uma coisa do passado, já não devíamos estar a discutir isto, acho que toda a gente deveria ter direito a casar-se e pronto".

A revolta vai transparecendo mais nas palavras, à medida que prossegue: "Os políticos são homofóbicos, muitos são gay e não se assumem e não respeitam quem se assume. Se a lei não mudar em Portugal, posso pedir a nacionalidade espanhola, tenho condições para fazê-lo, e ir a Espanha para recorrer a um centro especializado e fazer uma inseminação artificial. E casar-me. Não sei por que é que um país que está aqui tão perto é tão diferente de Portugal. Mas é exactamente por isso que participo neste tipo de eventos públicos, para tentar diminuir a distância".

Em Espanha, os casamentos entre pessoas do mesmo sexo e a adopção por casais homossexuais foram regulamentados em 2005. E as lésbicas podem aceder a centros especializados em reprodução medicamente assistida.


David e Pedro
Para que um beijo deixe de ser notado

David Campelo, de 20 anos, músico, beija Pedro Jerónimo, de 30, administrativo num banco. Está um fim de tarde lindo, a marcha do "Orgulho LGBT" chega ao fim, no Rossio. Quem participou começa a desmobilizar- se. David não. Fica mais um bocado na conversa com amigos. Transborda de energia. Dá um beijo entusiasmado, sôfrego, a Pedro. Na boca, para a fotografia. "O movimento activista está a crescer", diz David no intervalo da mini-sessão fotográfica. "Está mais unido e está a rejuvenescer. Temos muitos activistas da minha idade e até mais novos; temos jovens menores de idade que estão já activamente empenhados nas associações. Vem aí uma nova geração de activistas."

Há um ano que Pedro e David são um "casal estabelecido" - palavras de David que fazem Pedro rir-se. Não querem casar-se - já falaram do assunto e estão, pelo menos aparentemente, de acordo. Casamento, não. Para eles, não. Mas fazem questão de reivindicá-lo. Querem que a lei
mude, como, de resto, é pedido numa petição lançada há cerca de um mês que conta já com mais de seis mil assinaturas - entre as quais as de muitas figuras públicas.

"O casamento não passa de um papel assinado, mas, na cabeça de muitos casais, faz toda a diferença. É o oficializar uma relação, é ser-se reconhecido", defende David. Nem Pedro nem David precisam, contudo, desse reconhecimento. De que precisam, então? Pedro conta: diz que é bissexual. Que já beijou na boca raparigas na rua, em público, e que não é nada o mesmo do que beijar um rapaz. O beijo à rapariga não é notado; o beijo ao rapaz causa escândalo. "Tento que isso não me iniba. Tento não deixar de dar beijos na rua [a David], mas depende um bocado dos sítios, do ambiente à volta. Penso sempre nisso. Porque as pessoas olham, comentam, atacam..."

David enfurece-se. "Há muito casal que, com medo de ser atacado, nem a mãozinha dá, quanto mais um beijo." E, sim, a sua luta é contra essa sensação de que é preciso esconder alguma coisa: "A minha luta, o que eu quero, é que um dia qualquer um de nós vá na rua e, seja 'homo', 'bi', 'hetero' ou 'trans', isso seja indiferente. Muito tem que mudar na cabeça das pessoas e no discurso das pessoas. Começa logo por não partirmos sempre do princípio que uma menina tem, 'de certeza absoluta, um namorado'. Pode não ter. Pode ter uma namorada. É normal". Se calhar, só vai acontecer quando chegar "à terceira idade", brinca. Mas um dia, acredita, ninguém vai ser atacado por dar um beijo na boca de outra pessoa.


Margarida e Patrícia
Para poder casar-me outra vez

*São ambas bancárias. Estão ambas à sombra, no jardim do Príncipe Real, à espera que a marcha comece, quando falam com o PÚBLICO. Margarida Bom, de 52 anos, tem experiência destas coisas. Há anos que participa empenhadamente nas marchas LGBT. E sabe, por exemplo, que estes acontecimentos têm sempre inúmeros "fotógrafos profissionais" um pouco à
margem que, na verdade, não são nada "fotógrafos profissionais". São homossexuais que com o escudo da máquina fotográfica vêm ver como é. "Ainda não saíram do armário."

Já para Patrícia Antunes, de 36 anos, tudo é novo. Esta é a sua primeira marcha do "Orgulho". E está orgulhosa. "Estamos juntas há três anos", começa Patrícia. "Dantes eu era heterossexual, a Margarida foi a minha primeira experiência homossexual e eu não estava muito a par do que se
fazia e dos problemas que este segmento da população enfrentava."E agora? "Não me constrange nada estar neste tipo de eventos. Para mim foi fácil assumir a minha homossexualidade. Foi tão fácil que até a mim me espantou. Acho que, a partir do momento em que se assume que sentir amor por alguém é sempre válido, é fácil. Claro que temos que enfrentar os preconceitos das pessoas. Temos que enfrentar na família, no trabalho..." Encolhe os ombros: "Há muitas pessoas ignorantes". Agora que está a par dos "problemas que este segmento da população enfrenta", diz que o que a faz sair à rua é reclamar o acesso ao
casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Quanto a Margarida, já foi casada com um homem, há muitos anos, teve uma filha, que tem hoje 25 anos, e agora, se pudesse, casava-se com Patrícia. "Gostava simplesmente de ver esta relação reconhecida com todos os direitos legais que lhe são inerentes, mais nada. Não tenho uma visão romântica do casamento; romantismo é vivermos todos os dias juntos, com as coisas boas e com as chatices que isso implica. E da cerimónia do casamento, com todo o empolamento que a sociedade de consumo capitalista e heterossexual lhe dá, também prescindo."

Margarida lembra que os casais de pessoas do mesmo sexo podem viver em união de facto, mas que isso não é igual a um casamento civil. A união de facto não permite a escolha de um regime de bens; não há um património comum; as pessoas que vivem em união de facto não são
herdeiras uma da outra (cada uma pode fazer testamento mas apenas para parte do património); as dívidas do casal são da responsabilidade exclusiva da pessoa que as contrair, mesmo se contraídas em benefício do casal.

"A maioria heterossexual acha que defendemos o casamento por uma questão de estatuto, mas não é por uma questão de estatuto", remata Patrícia. "É porque temos o direito de amar quem queremos e a ser legalmente reconhecidos. Se pudesse casar-me, também me casava." Com Margarida, claro.


Fabrício e Anderson
Para adoptar uma criança

Fabrício Figueiredo, de 22 anos, imagina assim o seu casamento: uma superfesta, cheia de amigos, com a família toda. E depois? Depois adoptar uma criança e, quem sabe, viver em Portugal com o namorado, Anderson de Sousa, de 23 anos, e o filho. "Como se fosse nosso, biológico."Fabrício está de férias em Portugal. Vem do Brasil. Anderson, também brasileiro, chegou há alguns anos a Lisboa para trabalhar numa empresa de exportação e importação de produtos. Explicam que o "Orgulho" gay celebrado em Portugal é mais modesto do que no país deles - "No Brasil participam milhares e milhares de pessoas em qualquer evento deste tipo."


Mas as diferenças não ficam pela dimensão dos festejos. "Os homossexuais portugueses são menos assumidos", diz Anderson. "Os brasileiros dizem: 'Sou gay e tenho orgulho nisso.' Eu, por exemplo, nunca me senti rejeitado pela minha família. Quando assumi, as pessoas ficaram um pouco ansiosas, mas, com o tempo, isso acabou. Cá não é assim. As pessoas têm mais medo."


Mas não há só diferenças entre ser gay em Portugal ou no outro lado do Atlântico. Também no Brasil o casamento civil que Fabrício assinalaria com a superfesta está vedado a casais de pessoas do mesmo sexo. Tal como a adopção de crianças. É sobretudo por causa deste último aspecto que cá, como lá, Anderson sai à rua para protestar. "Temos a mesma capacidade de cuidar de uma criança que um casal heterossexual. É preconceito achar que não. É isso que temos que explicar às pessoas. Acho que elas vão acabar por entender."



.

No comments:

Post a Comment